34 Anos de Lei de Cotas: Quando a jornada não começa no crachá, mas no caminho até a empresa

 

A Selva S.A. comemora 34 anos da Lei de Cotas com festa, discursos e hashtags. Mas o verdadeiro desafio começa bem antes da pessoa bater à porta da empresa: começa no trajeto, nas calçadas, no ônibus, na rampa que não chega à porta.

Os animais falam sobre toda a realidade além da empresa

No pátio da Selva S.A., o Leão faz o discurso anual.

— “A cada ano mais bichos chegam! A Lei de Cotas trabalha, e nós também!”

A Tartaruga PcD, apoiada numa bengala adaptada, balbucia:

— “Legal, mas a viagem até aqui foi um suplício: calçada inexistente, ônibus sem elevador, sem vale-transporte digno.”

A Coruja Estatística, exibindo gráficos, alfineta:

“Dados do IBGE mostram que apenas 20,7% dos ônibus nos municípios são totalmente adaptados. Na maioria dos casos, nem há adaptabilidade nos veículos, quanto mais no percurso até a empresa.”

O Tamanduá Programador, que já saiu de casa duas horas antes apenas para chegar ao ponto de embarque, fala:

— “E se o metrô quebrou, o elevador tá quebrado, a plataforma me deixou embolado. Eu chego exausto e ainda longe da vaga de PcD.”

A Zebra do RH, com sorriso protocolar, tenta amenizar:

— “Tem passe livre, tem meio-passe, vale-transporte... está tudo previsto.”

A Cobra Auditora interrompe:

— “O Metrô do Rio, por exemplo, desde fevereiro exige cartão Vale Social que demora até seis meses pra sair deixa muita gente travada sem transporte. Isso não é previsto: é boicote.”

A Onça da Comunicação, fingindo entusiasmo de propaganda institucional, dispara:

— “Mas temos leis fortes! A Lei Brasileira de Inclusão de 2015 garante direito ao transporte e mobilidade iguais!” 

A Preguiça Sindical, com olhar lento, responde:

— “Leis bonitas no papel. Mas metrô, ônibus, calçadas… muitos ainda não têm piso tátil, rampa contínua ou sinalização funcional. Calçadas se tornaram muros invisíveis.”

Frases potentes dos animais 

  • Tartaruga: “Incluir dentro da empresa é nada se o caminho até lá é um labirinto.”

  • Tamanduá: “Chego cansado do trajeto antes mesmo de enfrentar reunião virtual.”

  • Coruja: “Sem transporte acessível, cotas viram exceção, não política pública.”

  • Preguiça: “Se calçada é muro, ninguém entra dignamente na selva.” 

A base real: o que os dados mostram

  • Desde janeiro de 2025, mais de 63 mil pessoas com deficiência foram contratadas por empresas obrigadas pela Lei de Cotas. 

  • Em janeiro de 2025, havia cerca de 619 mil PCDs com carteira assinada 93% deles em empresas com mais de 100 funcionários. 

  • Ainda assim, apenas 53% das vagas obrigatórias estão preenchidas. 

  • IBGE e MTE constataram que mais da metade dos transportes municipais estão apenas parcialmente adaptados, enquanto 27% não têm adaptação nenhuma. 

  • Calçadas acessíveis abrangem apenas cerca de 9% em cidades como São Paulo. A grande maioria das cidades brasileiras nem chega a 5%.

  • A Lei Brasileira de Inclusão (2015) reforça a obrigatoriedade de remover obstáculos físicos, porém a infraestrutura e fiscalização ainda são insuficientes.

Análise Antoniel Bastos

Não bastam os 34 anos da Lei de Cotas para pintar a Selva S.A. como paraíso da inclusão se o trajeto até lá continua tortuoso. A inclusão corporativa acontece dentro da empresa, mas começa nos vazios da cidade calçadas esburacadas, ônibus inacessíveis, políticas públicas que não saem do papel. Enquanto a Tartaruga luta para sair de casa, o Tamanduá já chega exausto, e o crachá se torna símbolo de privilégio restrito.

A mobilidade é o primeiro direito que falta. Sem transporte público adaptado e contínuo, sem calçadas decentes, sem semáforo que respeite quem caminha devagar, todo crachá é um objeto de resistência. A sociedade fermenta cotas, mas falta coragem para quebrar barreiras reais no trajeto entre a casa e a empresa. E aí, a inclusão vira marketing, a cota vira burocracia, e a diversidade vira hashtag de saldo físico.

Somamos contratos, vistorias e contratos Instagramáveis, mas esquecemos que até 90% das calçadas são muros invisíveis. Que em muitos municípios um ônibus adaptado é exceção, não padrão equitativo. Que leis como o Estatuto da Pessoa com Deficiência existem, mas a fiscalização que deveria transformar o papel em vida falha sistemas de vale-transporte limitados, cartões sociais burocráticos e infraestrutura deteriorada são muros jogados na frente da dignidade.

A Selva S.A. sabe faturar diversidade em relatório; mas ignora que para o eco da cota chegar é preciso transformar a cidade. É urgente que a Lei de Cotas seja usada como estopim de políticas integradas: transporte público, urbanismo acessível e investimento em mobilidade inclusiva. Porque não basta chegar é preciso chegar com dignidade.

Se a selva quer mesmo ser sociedade, tem que estender o tapete do respeito do portão da empresa até o ponto de ônibus. Assim, a inclusão não será apenas dentro do crachá, mas na jornada inteira.

Antoniel Bastos - Presidente da Rede Incluir, jornalista (MTB 00375/RJ), escritor e Coach em Desenvolvimento Humano (Universidade Anhanguera - SP). Minha expertise se estende ao Marketing Digital (Pós-Graduação Unisignorelli - RJ) , líder de iniciativas de Diversidade e Inclusão como Diretor de RH da ACIJA - Associação Industrial e Comercial de Jacarepaguá e Gestor de Relacionamento Estratégico do Grupo Tokke - Gestão de Qualidade de Vida.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Pessoa com Deficiência e a Farsa do Banquete Diverso

Quando o Leão Demite o Búfalo: O Colapso Emocional da Selva Corporativa

Crônicas da Selva S.A - “Geração Z: Entre o Wi-Fi e a Fuga