A Fábula do Tatu e da Coruja: O Reino dos Repetidos


Uma conversa sobre espelhos, muros e lixo emocional

Na encosta de um morro urbano, onde os prédios cresceram como árvores de concreto, vivia um Tatu chamado Tertuliano. Ele não era qualquer tatu — era um daqueles que cavava fundo, não buracos no chão, mas perguntas na alma.

Certa manhã, ele foi visitar sua amiga, a Coruja Belmira, que morava numa árvore isolada no centro de um condomínio chamado “Bosque dos Repetidos”.

— Belmira, — começou Tertuliano, arrastando sua carapaça como quem carrega uma década nas costas — você já percebeu que tudo aqui se repete?

A coruja ajeitou os óculos, virou a cabeça 180 graus e respondeu:

— Repete mesmo. O lixo fora do lugar, o cachorro solto, a música alta, o elevador preso no andar errado, as crianças virando ciclone, os adultos virando estátua. E o mais curioso... todos acham isso normal.

— E o que mais me dói — disse o tatu — é que ninguém reflete que conviver é um verbo, não uma decoração de edital de condomínio.
Mas sabe, Belmira, o que me intriga?
Não é ignorância.
É escolha.

— Escolha? — repetiu a coruja.

— Sim, minha amiga. O ser humano de hoje não falta cultura. Ele tem diplomas, cursos, pós-doutorados. Mas quando pisa no coletivo, troca o bom senso pelo "eu pago, eu posso".

A coruja silenciou.

— E quando questionamos o comportamento, — disse ela — nos dizem: “ah, são só crianças!”, “quem nunca foi adolescente?”, “meu cachorro não incomoda”, “só deixei o lixo rapidinho”.

— Mas o “só dessa vez” se repete há anos, Belmira.
Todo dia é domingo no Bosque dos Repetidos.
O mesmo lixo fora da lixeira.
O mesmo som que atravessa paredes.
A mesma desculpa disfarçada de riso.

— Sabe o que é pior, Tertuliano? — continuou a coruja — As pessoas pedem câmeras, grades, sensores, segurança de alta resolução…
Mas se esquecem de instalar empatia na alma.
E ainda perguntam se tudo isso é necessário.

— A segurança que falta é a que mora nas atitudes.
Nos gestos pequenos que ninguém vê.

E como diziam os antigos... — Tertuliano olhou para o céu cinza — “Toda mudança exige tempo. Mas o tempo exige ação.”

A coruja então abriu as asas e pousou sobre a antena do prédio principal.
Olhou para os moradores lá embaixo e pensou:

“Eles vivem blindados nas suas armaduras de status,
mas esquecem que o que protege uma comunidade
não são muros altos,
são atitudes baixas de ego.”

Moral da Fábula:

Não é mágica.
Não é pozinho de sininho.
É prática.
É parceria.
É perceber que a convivência começa quando deixamos de ser o centro do mundo
e passamos a ser parte do todo.

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